sábado, 15 de setembro de 2012

O bibliotecário imortal



Quando foi contratado como office-boy para a Academia Brasileira de Letras, aos 17 anos, Luiz Antônio de Souza escorregou na gramática na frente do imortal Austregésilo de Athayde, então presidente do tradicional ninho literário. Trocou o “eu” por “mim” numa frase e foi advertido pelo patrão. 

Passados 40 anos, Luiz Antônio recorda o erro como o trampolim para uma guinada em sua vida. O ex-garoto de recados, morador da Vila Cruzeiro, no subúrbio, tornou-se bibliotecário – hoje o mais antigo da Casa – e fez do contato com os livros mais que uma profissão. Fala francês e dá palestras. Seu grande sonho, confessa, ainda está por vir. Quer escrever um livro e tornar-se imortal. 

– Não posso negar que seja um sonho de todos os que lidam com isso – revela Souza, ao referir-se a uma vaga no salão Petit Trianon.

Ele prefere não comentar seus projetos editoriais. Diz que uma cadeira na Casa é questão de muito tempo e talento, mas não um sonho impossível. E deu uma mostra: exibiu um texto em que fala da importância do livro para a sociedade. De quebra, faz uma breve análise da obra de Machado de Assis – seu ídolo. Com base nisso, Souza já proferiu dezenas de palestras em escolas da Região Metropolitana do Rio.

Em meio a tantos exemplares, o bibliotecário encontra campo aberto para se aprimorar – tem uma meta de leitura que, se não torná-lo tão letrado quanto os imortais, ao menos o colocará na seleta lista dos amantes da literatura. Em casa, possui mais de 1.200 livros.

– Minha mãe mal sabia falar, mas em minha casa havia muitos dicionários e enciclopédias. Hoje, leio pelo menos 25 livros por ano. E tenho muitas outras obras autografadas pelos imortais – diz, com orgulho.

Aos 57 anos, Souza por enquanto quer o anonimato. Discorre sobre política, futebol e religião sem tropeços, com a eloquência adquirida nas três décadas de convivência com os escritores na sede da ABL. Tem mais tempo de casa que todos os imortais ali.

E teve o privilégio de cumprimentar mais de 40 eleitos. 

– Uma pessoa que marcou muito a minha carreira foi Antonio Houaiss. Foi para ele que fiz o meu primeiro trabalho como bibliotecário e ele se tornou uma referência para mim.

O contato com os imortais é outro ponto positivo na carreira de Souza, segundo conta. Aprendeu a falar francês, por exemplo, depois de ganhar uma bolsa do acadêmico Américo Jacobina Lacombe, falecido em 1993. 

– Quero viajar para a França e conhecer a academia de lá, além do palácio Petit Trianon.

Não é por menos que Souza respira literatura. Sob sua tutela, na biblioteca, estão o tinteiro de Euclides da Cunha, a escrivaninha de Olavo Bilac e algumas estantes de Manuel Bandeira. Nas prateleiras, acervos de Machado e Afrânio Peixoto, entre outros. 

Fora dali, quer ser professor. Pretende fazer um curso e lecionar Português.

– Esta a glória que fica, eleva, honra e consola – cita a frase machadiana, enquanto cultiva o sonho de uma vaga na ABL.

O imortal Arnaldo Niskier é admirador do bibliotecário, mas vê com cautela o seu sonho: 


– Não conheço ainda nada do que ele escreveu. Para entrar na academia é preciso escrever bem, não só falar bem – ressalta, sem contudo desacreditar Souza.

(reportagem publicada por mim originalmente em 2003, pelo JB. Reeditada em Setembro de 2012 com atualização de números e datas)

domingo, 29 de julho de 2012

Pimentinha, o grande anão motoqueiro



Um anão motoqueiro de terno, gravata e capacete entra queimando pneus numa curva do Largo do Machado, na Zona Sul do Rio. O velocímetro bate os 50 km/h, compatíveis com a minimoto. O carburador barulhento espanta os pombos da praça e chama a atenção dos passantes. "Meu Deus, o que é aquilo?", surpreende-se um morador. É Manoel Pimenta da Costa, 78 centímetros de altura, que acabava de sair das compras nas Casas Sendas.

É a segunda vez que Pimentinha - como é chamado carinhosamente pelos amigos - manda ver numa curva em alta velocidade. A primeira foi no dia em que comprou a moto. Fã de Ayrton Senna, ia animado mostrar a máquina aos amigos, mas se empolgou numa curva e deu com a cara no poste, a cem metros de casa. "Fui desviar de um carro e perdi o controle", tenta justificar o motoqueiro, que não tem carteira e não paga IPVA.Socorrido por um médico, "meio tonto da cabeça", foi levado para um hospital. A moto quase teve um destino trágico. Só coube na traseira de uma caçamba da Comlurb, a empresa de coleta de lixo municipal, que a despejou, intacta, em frente ao pronto-socorro.

Sonho

Não é de hoje que Pimentinha passa por poucas e boas com a minimoto. Achou o modelo na internet e pagou R$ 3.300 à vista numa importadora, no início dos anos 2000. Não sabe quantos quilômetros faz por litro. "Vou botando gasolina e ando", explica. Roda toda a cidade sem medo de ser massacrado pelos ônibus e virar fóssil no asfalto. Depois do primeiro choque, também perdeu o medo dos postes. "Agora quero uma mais potente", diverte-se.

Pimentinha nasceu na pequena Ibiapina, no interior do Ceará, onde viveu com 20 irmãos - oito deles foram para o Rio. Vítima de paralisia infantil aos 5 anos, sofreu para estudar. Começou tarde, mas completou o ginásio, encontrou força na religião e se descobriu comediante. Vive rindo, até da própria má sorte, e assim venceu o trauma de infância. Voltou a andar, e hoje até dança. "Sou o modelo da família", brinca.



O pequeno motociclista é exceção, e se orgulha disso. Longe dos padrões de beleza que garantem a boa vida dos galãs de tevê, chegou ao Rio há 16 anos com o sonho de ser ator. Descoberto por um diretor da Globo, conseguiu o ganha-pão na emissora. Já fez ponta em nove novelas. Nunca o viu? "Fui um dos herdeiros do Francisco Cuoco no final de Cobras e Lagartos". Não lembra? Talvez você o conheça do quartel de Didi Mocó, com quem gravou por oito meses, ou do Tabajara Futebol Clube, do Casseta& Planeta, com quem atuou por seis anos.

Como atores anões recebem cachês à altura, literalmente, Pimentinha se vira animando festas nos fins de semana. Veste-se de diabinho, de Papai Noel, conta piadas em reuniões de adultos. "Faço o meu trabalho e consigo para os outros pequenininhos também", orgulha-se. Quando não está em serviço, deixa a moto na garagem e atua como barman num barzinho do qual é sócio, no Cosme Velho. Divide um apartamento no mesmo bairro com amigos. Todos conterrâneos, mas nenhum deles motoqueiro.

Conversa fácil, extrovertido e determinado, Pimentinha só se arrepende de uma coisa na vida: ter usado a lábia para tentar a carreira política. Foi há 18 anos, na terra natal, quando se candidatou a vereador pelo PSDB. "Perdi por 50 votos", lembra. Quatro anos depois, mudou de lado e fundou o PT da cidade. Novo fracasso. Ainda filiado ao partido lá, não tem o mesmo ânimo no Rio. Virou opositor do ex-presidente Lula, a ponto de escrever - e recitar - um poema de protesto.

Pimentinha só não ganha dinheiro com a moto. Apesar de despertar a atenção dos outros, considera-a apenas um meio para correr pela cidade. "As pessoas tiram foto, filmam. Um dia um policial me parou na saída do Túnel Santa Bárbara. Eu disse 'Meu Deus, tô perdido'. Mas ele queria saber onde eu tinha comprado a moto".

Certa noite, em Copacabana, aproximou-se um grupinho de belas mulheres. Queriam tirar foto na minimoto. Ele foi logo se adiantando, malandro: "É mais fácil você sentar na moto e me colocar no colo". Dito e feito. Pimentinha saiu bonito na foto.